Lar: um lugar de paz
Por Janice Mansur (@janice_mansur)*
Ela saía todos os dias pela manhã para trabalhar e voltava tarde. Um dia precisou passar a ficar em casa por mais tempo. Sua mãe e seu pais idosos precisavam de cuidados. Enamorou-se nesse meio tempo, se casou. Vieram dois filhos gêmeos. O trabalho se ampliou. Mas de tudo o que havia acontecido, tristezas e alegrias, uma coisa perdurou em sua vida, seu lar ainda era seu refúgio…
Bem, isso poderia ser o início de um romance, mas é apenas uma ilustração. Você concorda comigo que um lar deve ser um lugar de paz e refúgio? Nesse período todo de pandemia, milhares de pessoas viveram verdadeiros infernos: falta de privacidade, abusos verbais e físicos e todas as formas de violência possíveis e inimagináveis. Na Inglaterra e no País de Gales, por exemplo, em março de 2021, o número de incidentes relacionados ao abuso doméstico registrado pela polícia aumentou 6% em comparação a março de 2020. Quando se fala em milhares de pessoas o percentual é considerável. E isso ocorre porque “lar” deixou de existir. Como assim “deixou de existir”?
Você acha que as palavras têm algum poder em nossas vidas?
Algumas pessoas não acreditam que as palavras podem ter uma força indescritível em nossas vidas e na formação de nosso caráter, mas têm. Imaginemos aqui uma cena: um garotinho de 5 anos chorando e pedindo colo porque está com sono e cansado. Um pai e uma mãe estressados do dia a dia e com sua relação desgastada. O pai grita: “não vou te dar colo nenhum, você já é bem grandinho, vai para a cama dormir”. Essa rejeição pronunciada pela altura da voz, emoção empregada e gestual condizente, fica impressa na cabeça e no corpo desse ser que vai crescer com severos desajustes emocionais. Principalmente se isso se repetir por muito tempo.
Um lar onde palavras são usadas para agredir, humilhar e se desfazer do outro, vai danificando o aspecto psíquico do ser, vai poluindo nossa alma. Não é um lar, é somente uma residência, uma moradia, uma casa. Um refúgio tem que ser um lugar de parada, um abrigo da chuva das horas difíceis, um amparo nos momentos em que não sei o que fazer. Se você está vivendo numa residência é necessário repensar como ela poderia se tornar um lar para você. Um lar pode ser composto por uma pessoa e um animal de estimação, ou por pessoas que nem são parentes, mas se tornaram uma família, são afins, são irmãs de coração. Não há regras para se ter um lar, entretanto ele é aquele lugar em que você se sente bem, simples assim.
O que você acha de tentar?
Então, pegue lápis e papel e bora lá! Escreva 6 coisas que você vive na sua casa (no sentido de acolhimento e bem-estar, nada de bens materiais, ou o contrário. Tem gente por aí com casa pobre e lar rico.), e separe em duas colunas: boas e ruins.
Daí você vai observar quantas coisas você considerou “boas” para ser um lar onde gostaria de estar e quantas são “ruins”, ou seja, não correspondem a sua expectativa. Se a quantidade de situações e emoções vividas foram mais positivas do que negativas no seu modo de ver e entender o que é um lar, ótimo, você está no lugar certo. Aqui lembro que o que pode ser bom para um pode ser ruim para outro. Eu, por exemplo, por mais que ame animais, não poderia viver maritalmente com quem quisesse beijar na boca de um cãozinho, ou ainda viver com alguém que fosse preconceituoso. Então, só você sabe o que pode tolerar.
Digamos que eu tenha, então, anotado 4 coisas boas contra 2 coisas ruins. Isso pode ser melhorado, mas está bom, pois não há nada perfeito neste mundo, nem um LAR. Daí a sugestão é mais diálogo e compreensão. Talvez fosse bom um conjunto de regras para facilitar a convivência, como, por exemplo, “para entrar no meu quarto, preciso que batam na porta antes”, “acabando de fazer a refeição, lave seus pratos”, mas também psicoterapia. Porém, se você anotou 2 coisas boas contra 4 ruins, aí a coisa está complicada e é melhor pensar em uma saída urgente. Sei que não é simples, mas não conseguimos nunca mudar pessoas (às vezes conseguimos influenciá-las), e se meu entorno não corresponde ao que preciso receber (e doar) para ter uma vida mental saudável, preciso começar a me articular para conseguir o lar desejado. Conversar e mostrar às pessoas que também tenho necessidades a serem respeitadas, pode ajudar.
E quando falo aqui em receber e doar é para lembrar que na vida tudo é uma via de mão dupla, “um toma lá da cá” incessante. Se você quer pessoas legais a sua volta, acolhedoras, isso deve começar com e por você, não acha?
Pense que nem sempre nascemos no lar e família que queremos, mas na que precisamos. E se uma casa pode se tornar um lar, ela precisa ter afeto, afetados e afetadores. Para que volte a existir um lar em sua casa, é preciso que você também seja um lar para você mesmo/a e para as pessoas a sua volta. Vamos conversar?
Se precisar de ajuda urgente aqui em Londres, entre em contato https://www.refuge.org.uk/ (Against domestic violence).
* Janice Mansur é escritora, professora, revisora de tradução, criadora de conteúdo e psicoterapeuta para todas as orientações sexuais e gêneros (atendendo online). Canal do Youtube: BETTER & Happier Instagram: @janice_mansur
Leia também: