A ARTE COMO REPARAÇAO HISTÓRICA: OS BURGUESES DE CALAIS
Por: Sueli Lopes
Diplomacia, de acordo com alguns conceitos, consiste na ação civilizada e pacífica de se
relacionar com diferentes grupos, nações ou sociedades. Representa um instrumento típico da
política externa dos países, que se concentra em manter as relações entre os diferentes
Estados soberanos equilibradas. Ou seja, e´ considerada, no próprio sentido da palavra, uma
arte, a arte do possível! E como indivíduos, podemos contribuir para uma sociedade melhor,
mais pacífica, de várias formas.
Uma delas, indiscutivelmente, é por meio das Artes, em todos os seus segmentos e
modalidades. Van Gogh não exagerou, ao dizer: “Procura compreender o que dizem os
artistas em suas obras, os mestres sérios, aí está Deus.” Que citação mais certeira. Há muito
o que se descobrir por trás das obras-primas. A verdadeira Arte tem um profundo
compromisso com a humanização do homem e, muitas vezes, diz muito além do que
podemos imaginar. Em alguns casos, as manifestações artísticas são expressões de uma
reparação histórica, inclusive.
E tudo conta, a época em que foram feitas, os locais em que são expostas, dentre outros
fatores.
Aliás, num tempo em que o “storytelling” ganha cada vez mais espaço e valor em nossa vida
profissional, vale a pena procurarmos maneiras de aprimorarmos nossa capacidade de
descobrir histórias. E, não há dúvida de que as obras de arte e os monumentos são um
excelente caminho. E não só, podem significar uma verdadeira atitude diplomática.
Como bem expressa Austin Kleon, as histórias estão por toda parte, basta termos olhos e
alma para percebê-las. E aqui está um storytelling muito bem representado pela belíssima
obra de Auguste Rodin: “Os Burgueses de Calais”. Mais do que isso, uma reparação
histórica, pois, ao meu ver, o fato de estar exposta exatamente nos belíssimos jardins do
Parlamento Britânico, no “Victoria Tower Gardens”, admite um elegante, diplomático e
sensível pedido de desculpas sobre algo acontecido no passado.
Este monumento tem um significado muito especial para o povo francês, pois representa seis
cidadãos e líderes da cidade de Calais que se ofereceram para serem mortos durante a
invasão inglesa, em 1347, durante a “Guerra dos Cem Anos”, com o objetivo de salvar a
cidade. Eles são aqui mostrados como pessoas comuns, sem qualquer traço de heroísmo.
Cada detalhe conta: estão vestidos com roupas rotas e levam cordas com nós. Eustache de
Saint-Pierre – o mais velho e mais rico do grupo – foi o responsável por entregar ao inimigo a
chave da cidade. Rodin teve como base o relato do cronista da época, Jean Froissart, para
criar sua obra.
Eustache de Saint-Pierre – o líder do grupo – é representado com a cabeça baixa e o rosto
barbado, no meio. À sua esquerda, ereto e trazendo a boca fechada em uma linha apertada,
Jean d’Aire traz nas mãos um grande conjunto de chaves. Os demais são identificados como
Andrieu d’Andres, Jean de Fiennes, Pierre e Jacques de Wissant.
Ao observar as seis figuras, podemos notar que elas mostram diferentes reações, traduzindo o
momento cruciante em que se encontravam, certas de que seriam executadas, o que acabou
não acontecendo em razão da intercessão da rainha inglesa. E vale notar o quanto a
composição em círculo de Rodin permitiu que nenhum dos homens fosse o ponto focal, e a
escultura pode ser olhada de diferentes perspectivas.
Segundo o escritor medieval Jean Froissart – cronista francês do século XIV –, Edward III
da Inglaterra ofereceu-se para “poupar” o povo da cidade, se seis de seus líderes se
entregassem a ele, exigindo que saíssem com a cabeça e os pés nus e usassem cordas no
pescoço e portassem as chaves da cidade e do castelo. E assim eles fizeram.
Absolutamente incrível a reação, a vida, o sentimento tão vivos em cada um daqueles
rostos. A reação ao observá-la é de compaixão por tamanha humilhação, ao mesmo tempo
que há também admiração pela bravura daqueles grandes homens.
Bendita Arte que nos proporciona tamanha descoberta, que nos eterniza tantos momentos e
fatos importantes, que nos leva ao encontro da História de uma forma tão nobre e
enriquecedora! Bendita Arte, que também expressa uma reparação social histórica!
Com efeito, as injustiças e perversidades sofridas no passado podem ser minimizadas por
meio de iniciativas voltadas à arte e cultura, e a obra de Roldin é um claro exemplo disso.
Aliás, termino este artigo com uma citação de José Craveirinha., o Poeta da Reparação
Histórica: “Todo o poeta quando preso é um refugiado livre no universo
de cada coração na rua.”