Dona Ivone Lara e a complexidade de ser mulher preta

Por Fabiana Lopes da Cunha e Lyllian Bragança*

Nas mídias e redes sociais muito tem se falado sobre Dona Ivone Lara, utilizando como um dos motivos o centenário de seu nascimento. Obviamente, a história de vida de Dona Ivone Lara é tão grande, tão importante que não é preciso nenhum motivo para falar sobre ela:  mulher, preta, guerreira, mãe, profissional da saúde e, claro, grande compositora e intérprete da música brasileira.

No entanto, segundo Lucas Nobile, autor do livro “Dona Ivone Lara: A Primeira Dama do Samba”, publicado pela Sambabook e entrevistado pela historiadora do samba e professora doutora Fabiana Lopes da Cunha, no dia 16/04 no canal do Instagram: @sambadebamba_uk, ela não completaria 100 anos agora e, sim, no próximo ano, em 2022.

E como essa Associação Educacional e Cultural visa o conhecimento e sua difusão, a busca das diferentes histórias de vida e do samba e a manutenção de conteúdo para a preservação da memória deste gênero musical, esta live com o jornalista Lucas Nobile trouxe ao público informações valiosas que resumimos neste texto.

De todo modo, para quem quiser saber mais sobre o tema, no nosso Instagram há acesso à entrevista. Para quem quiser saber um pouco mais, poderá ainda comprar o livro de Lucas Nobile que está disponível nas principais livrarias, no formato impresso ou digital.

A primeira-dama do samba

Ivone Lara nasceu Yvonne da Silva Lara. Seus pais se conheceram durante as diferentes manifestações carnavalescas que ocorriam no Rio de Janeiro no início do século XX e que ajudaram na criação das primeiras escolas de samba. O pai João da Silva Lara desfilava no Bloco dos Africanos, onde era violonista sete cordas. A mãe dona Emerentina Bento da Silva cantava nos ranchos Flor do Abacate e o de Ameno Resedá*.

Foi nessa família musical, com diferentes manifestações musicais e festivas, que Dona Ivone cresceu, perdendo o pai e a mãe ainda muito jovem.

Quando ela foi morar com o tio, Dionísio, que tocava trombone, ela aprendeu a tocar cavaquinho, e foi com os primos que começou a compor seus primeiros sambas. Por conta das restrições e da cultura machista nesse meio, concordou que essas primeiras composições não levassem seu nome.

Pois, assim, poderia concorrer da mesma forma, mas sem o reconhecimento. Apesar de seu grande talento, ela vai viver múltiplas vezes essa questão do machismo e do preconceito enraizado na sociedade, ao longo de sua vida artística. Para além, ela vai transcender o “lugar único” que Lélia Gonzales traz nos seus escritos, e vai desviar de maneira singular das Interseccionalidades impostas por um movimento eurocêntrico do nosso país.

E como vai se desvencilhando das dificuldades, e abrindo as brechas que a ancestralidade lhe deu? Ela vai honrar sua mãe, que segundo Nobile, modificando sua data de nascimento para que ela pudesse ingressar no colégio. E seria por conta disso a adulteração no documento e nas datas de seu aniversário. Dona Emerentina, entendendo que a educação era o que o poderia validar um futuro melhor para a filha, aumenta em um ano o seu registro. Matriculada no colégio público Orsina da Fonseca, ela começa a ter um aprendizado musical mais erudito, vinculado ao canto orfeônico do projeto de Villa-Lobos , do governo getulista.

Mas, vale dizer, ela já tinha, através da sua família, uma outra vivência musical, vinculada à oralidade e à ancestralidade, com o Jongo da Serrinha que vinha de sua vó Teresa.

É bom entender os atravessamentos que aconteceram na vida de Dona Ivone para que ela se tornasse a grande artista que hoje conhecemos.

Nessa trajetória, entre trabalhar em uma fábrica e entrar para a carreira de enfermeira, opta pela última. Consegue ser aprovada entre as 10 primeiras colocações. Formada, posteriormente passa a se dedicar à assistência social ao lado da Dra. Nise da Silveira e, por 37 anos, trabalha com uma terapia diferenciada com seus pacientes buscando um tratamento mais humano.

A música e a arte serão instrumentos utilizados para isso e se tornariam uma referência na área da saúde.

No seu caminho ela encontra Osmar Costa, filho de Alfredo Costa, fundador da escola de samba Prazer da Serrinha (na dissidência dá origem a Império Serrano), com quem se casa e tem dois filhos.

Osmar era filho do presidente do Prazer da Serrinha e foi importante em sua vida pessoal e artística. No entanto, ele não gostava de vê–la atuando na noite, já que para fazer samba era necessário estar num meio essencialmente masculino e notívago. Por conta dessa situação, ela vai se manter no meio musical, mas de forma discreta.

Hoje, livros como o de Djamila Ribeiro, “Lugar de Fala” (que ela ilustra com várias outras escritoras), nos ajudam a compreender melhora questão da desumanização do “ser mulher”, que não tem voz e que para a mulher preta isso é muito mais contundente.

É preciso sempre olhar para a formação do Brasil, onde esses silenciamentos, para além das famílias, também estão presentes nas escolas de samba, nas rodas de samba, até os dias de hoje. Então, podemos imaginar como seria para Dona Ivone naquela época.

Em 1965 ela se impôs contra a exclusão de seu nome na composição de um samba enredo. No dia da apresentação por Silas de Oliveira e Antônio Bacalhau,  o samba composto por ela não tinha seu nome na divulgação. Isso causou um grande desconforto, mas ela se impôs e os organizadores tiveram que desfazer o que chamaram de mal-entendido.

De certo seus parceiros não o fizeram de má fé (pois parecia ser uma prática comum), mas esses são exemplos clássicos de apagamentos sistêmicos dos quais a própria sociedade se vale para não validar o outro e, nesse caso específico, uma mulher preta.

Mas, ao se impor, ela foi reconhecida oficialmente como a primeira mulher compositora de um samba-enredo que foi ovacionado na avenida. E a primeira mulher a fazer parte da ala dos compositores de uma escola de samba, no caso, a Império Serrano.

Mesmo atuando na escola de samba assiduamente e desfilando na ala das baianas (onde confeccionava sua própria fantasia), foi somente em 1978, após o falecimento de seu marido e de sua aposentadoria, que Dona Ivone consegue lançar seu primeiro LP, numa empreitada de Adelzon Alves que fez grande sucesso.  Aos 58 anos de idade ela dá início a uma grande carreira musical. Dona Ivone Lara, é uma artista completa. Com seu talento e sua ancestralidade vinculada ao jongo, aos ranchos carnavalescos, ao canto orfeônico, aos partidos altos, à vivência dos sambas de terreiro e de escolas de samba, ela, mulher preta, sambista, vai abrindo espaço, e consegue obter grande sucesso e reconhecimento no meio musical e artístico como compositora, instrumentista e intérprete. E é com “Sonho Meu”, que consegue o reconhecimento nacional.

Apesar de ter começado sua carreira tardiamente, gravou 25 discos. Ganhou vários prêmios nas categorias de música, samba e Música Popular Brasileira (MPB). Em 2002, recebeu um prêmio pelo conjunto de sua obra. Teve vários parceiros musicais, mas o principal foi Délcio Carvalho, com quem compôs os famosos “Sonho Meu” e “Acreditar”. Grande letrista e com melodias refinadas, segundo Túlio Feliciano, “ela é a síntese do samba. Tem o ritmo dos tambores do jongo e a riqueza melódica e harmônica do choro. Em seu canto intuitivo está um pouco da África e do negro americano”.

Dona Ivone Lara, aos 96 anos, deixa esse mundo coroada de glórias e se torna eterna por sua luta, trajetória de vida e por seus sambas entoados em todas as rodas de samba no Brasil e no mundo. Em O Globo, do dia 18 de abril de 2018, dois dias após sua morte, a jornalista Flávia de Oliveira afirma que Dona Ivone Lara “foi feminista antes do feminismo; empoderada antes do empoderamento (…) Rainha do samba, encarnou ideais de emancipação e liberdade, que as jovens deste século ainda batalham para naturalizar. É soberana de todas nós, mulheres brasileiras.” Para nós, é uma honra e orgulho ter podido contar um pouco dessa história, do nosso samba, do carnaval através da narrativa de Nobile sobre essa mulher preta, talentosa e guerreira, eternizada em nossos discos e memórias. Axé!

* Fabiana Lopes da Cunha e Lyllian Bragança são integrantes do Samba de Bamba UK. No Instagram, @sambadebamba_uk. Facebook e YouTube: Samba de Bamba UK.

Imagem: Acervo Samba de Bamba UK

Também pode interessar:

One thought on “Dona Ivone Lara e a complexidade de ser mulher preta

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *