MIA COUTO – a sua poesia é uma forma de viver o mundo!

Antônio Emílio Leite Couto, mais conhecido por Mia Couto, nasceu em 5 de julho de 1955 na cidade da Beira, em Moçambique. É filho de uma família de emigrantes portugueses. O pai, Fernando Couto, natural de Rio Tinto, foi jornalista e poeta. Mia Couto é um “escritor da terra”, escreve e descreve as próprias raízes do mundo, explorando a própria natureza humana na sua relação umbilical com a terra. A sua linguagem extremamente rica e muito fértil em neologismos, confere-lhe um atributo de singular percepção e interpretação da beleza interna das coisas.

Você pode estar interessado: Ídolos. Porque temos que ter um? Quero ser igual a ele!

Atualmente é o autor moçambicano mais traduzido e divulgado no exterior, e um dos autores estrangeiros mais vendidos em Portugal. As suas obras são traduzidas e publicadas em 24 países. Várias das suas obras têm sido adaptadas ao teatro e cinema. Tem recebido vários prêmios nacionais e internacionais, por vários dos seus livros e pelo conjunto de sua obra literária.
 

JNP: Quem é Mia Couto?

Mia: É alguém que não sabe quem é! Alguém que está procurando descobrir-se e sabe que essa descoberta é feita na troca com os outros, nesse intercâmbio que eu faço. Ninguém se descobre em si próprio, descobre-se nas histórias dos outros. É isso que eu estou a fazer. 

JNP: Como é ser escritor? 

Mia: O escritor é um viajante, um contrabandista de alma e tem essa disponibilidade de deixar de ser ele próprio para se ver nas histórias dos outros.

JNP: Como é ver a sua arte atravessar fronteiras e projetar África no mundo inteiro?

Mia: Penso que consegui, assim como muitos escritores africanos, porque no interior de África e no interior de nós próprios, há esse pressuposto de que era preciso provar a africanidade também, nós vencemos esse fantasma. Acho que essa foi uma batalha individual dos escritores africano, e nós vencemos essa batalha.

 
JNP: E como é ver a sua obra adentrar os teatros, o que o teatro representa para você?
Mia:
Eu devo muito ao teatro e aprendi muito, porque cada escritor tem que ter a sua própria escola, não é? Mas o teatro em Moçambique foi para mim uma grande escola.  Aprendi a escrever também com o teatro, e numa altura em que não havia nada, porque tínhamos uma situação de carência, de absoluta pobreza por causa da guerra, não é? De fato, o teatro é um instrumento muito importante, uma ferramenta que permite ao escritor ter essa possibilidade de acesso imediato, de como é que ele é capaz de fazer chorar, de fazer rir. Com o teatro, sim! Eu tenho uma relação quase simbiótica de aprendizagem. 

JNP: Você disse que a literatura brasileira influenciou muito sua obra. Fale um pouco sobre isso.

Mia: Essa influencia foi muito, mas muito grande! Uma vez, eu tive que fazer uma intervenção sobre o lançamento de Jorge Amado, eu reparei que mesmo o Brasil, esse conhecimento… como é que Brasil viajou, digamos assim, como passou para o outro lado do Atlântico… é um conhecimento frágil, ou seja, não tem ideia geral de quanto profunda e marcada foi essa influência.

Eu falava do caso de Jorge Amado que foi alguém que nos tocou a todos, essa influência foi muito, muito forte.  O Brasil representava quase aquilo do que nós queríamos ser. O Brasil havia retirado a portugalidade da língua portuguesa. E era isso que nós estávamos a procura também, não é? Esse sabor que tinha que se procurar nos livros, quase na clandestinidade, falo dos livros de Jorge Amado, em particular, trazia uma coisa quase mágica, uma relação quase mágica, pois não estávamos só a mexer com literatura, mas a mexer com um sonho que estava adiado. 

JNP: E quais foram os escritores brasileiros que marcaram sua trajetória e alimentaram a sua inspiração? 

Mia: Eu tenho grandes influências, quer dizer: marcaram-me vários escritores e principalmente poetas. Porque eu sou alguém que nasce da poesia, eu considero-me um próprio poeta, um poeta que escreve em prosas, contando histórias.

Eu fui marcado por João Cabral de Melo Neto, que eu acho que é um dos grandes valores da poesia, em todo mundo. Carlos Drummond de Andrade, Adélia Prado, Manoel Bandeira. Guimarães Rosa marcou-me muito também, muito mesmo! Principalmente, por aquilo que ele tem de carga poética, quando ele escreve os seus textos. Minha relação com o Brasil é essa! Tenho uma grande dívida com o Brasil.

JNP:Mia como é que funciona o processo de autorização de uma obra sua ser transformada em peça de teatro? 

Mia: Eu nunca tive essa relação de posse, às vezes, quando me perguntam: Você autoriza que…? Eu acho muito estranho… Mas estão a perguntar a mim? Mas isso já não me pertence, nunca me pertenceu, não dessa maneira.

JNP: Mia, seu pai também foi um poeta de rara sensibilidade, como era a relação com ele?

Mia: Eu não sou só filho de poeta, meu pai criou, em nossa casa, uma espécie de uma atmosfera, que eu poderia dizer que era quase irreal. A maneira como ele olhava o mundo, pelo valor que ele dava às coisas; ele trabalhava nos caminhos de ferro, e levava-nos para fazer os deveres de casa lá, no armazém dos caminhos de ferro. Ele tinha pressa que acabássemos o dever, ele queria mesmo era andar ao longo das linhas férreas, ele apanhava umas pedrinhas, uns minérios que caíam…e lhe dava tanto prazer, que nos obrigava a repensar o mundo. Se pergunta do lugar da escrita, pois isso fez nascer em nós essa ideia de que nós só poderíamos nos sentir existentes, se fosse por via dessa maneira de nos comunicar no mundo. 

JNP: O que a escrita para você?

Mia: A escrita é ter uma história para contar. A obsessão por escrever bem, coisa que quase paralisa os jovens escritores, é o que atrapalha o ato de fluir da escrita.  Com essa urgência, com esse fantasma de ter que escrever bem, muitas vezes eles não se apercebem que o mais importante é ter uma boa história para contar. Isso é que é a escrita! Isso é que nos enriquece como seres humanos, não é? 

JNP: Como é que você constrói um personagem? 

Mia: Há coisas que eu capto na vida e em pessoas. É quase como desmaterializar essa pessoa, convertê-la em personagem, e esse personagem pede uma história, e eu sou levado. Eu sou conduzido por essas vozes, por essa gente que não é história, mas que me pede que eu lhes confira essa história. 

JNP: Como é o seu processo da escrita, Mia? 

Mia: Eu não tenho consciência de quando é que estou a escrever, porque estou sempre a escrever. Porque a escrita não é só aquele momento que nos colamos dentro do computador, ou do papel, é a maneira como nós estamos disponíveis para receber os outros, é a troca com os outros. Isso acontece agora, aqui. Neste momento, eu estou falando consigo e estou escrevendo. É um ato de tal maneira tão disperso, tão fragmentado, que não pode ser separado e dizer: Agora eu estou a escrever! 

JNP: Como é que você vê a instituição “família”? Na sua opinião, qual o futuro da família? 

Mia: Eu vejo com alguma preocupação essa tendência de a família não ter tempo para ser família. Vejo com alguma preocupação essa redução do espaço da família, do tempo da família. Acho que a gente tem que encontrar um outro caminho…e isso não depende apenas da vontade, as pessoas ao fazerem isso, reduzem o tempo com os filhos e com outros, não só porque não querem, mas a vida obriga a isso, não é? Mas também é preciso desligar um pouco esses botões da internet, da televisão, da rádio, que substituíram uma coisa muito simples que é esse espaço sagrado, onde a gente conversa, onde a gente conta história. A casa tem que ser encantada no sentido de ser um lugar de história.

JNP: Me diga três livros que deixaram lições na sua vida?

Mia: “O Livro do Desassossego”, de Fernando Pessoa; “Grande Sertão: Vereda”, de Guimarães Rosa; e a obra do José Craverinha, que é um poeta nosso e que me ajudou a perceber o meu país. 

JNP: O que é que você gostaria de fazer na sua vida que ainda não fez, Mia? 

Mia:  Tudo. 

Você pode estar interessado: Eleições Presidenciais 2022 Votação em Londres

JNP: Tudo? Com a sua história, e tantas outras histórias, todas tão ricas…como é falta tanta coisa, assim?

Mia: É! Falta sempre viver tudo. E falta aprender a dançar. Acho que dançar não é só uma maneira de divertimento, é uma maneira de conectar-me com o mundo. Isso é que me falta! Até tenho medo que quando eu aprender a dançar, nunca mais deixe de dançar… (risos). 

JNP: Ô, Mia, eu nem sei como lhe dizer obrigada! 

Mia: Eu que agradeço! E você já está me dizendo, é assim, com este abraço. 

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *