Temos Muito o que Aprender com os Povos Originários – O Futuro é Ancestral

Por: Sueli Lopes

Vivemos em tempos de crise: mudanças climáticas, perda de biodiversidade e uma desconexão crescente entre humanidade e natureza. Esses sinais refletem um modelo civilizatório insustentável. Porém, alternativas sustentáveis sempre existiram, apontadas pelos povos originários, frequentemente marginalizados. Como lembra Ailton Krenak, ativista indígena e pensador, o futuro depende de escutarmos as vozes ancestrais. Krenak nos alerta que os povos indígenas enfrentam o “fim de seus mundos” há séculos, desde a colonização até a destruição de territórios. Ele cita o desastre da barragem da Vale do Rio Doce como exemplo: para os Krenak, o rio morto pela lama tóxica era um avô, uma entidade viva. Essa visão de parentesco universal caracteriza a cosmovisão indígena, onde rios, árvores e montanhas não são recursos, mas parentes. Ao invés de explorar, como faz a lógica ocidental, os povos originários cultivam relações de respeito e reverência. Durante o Congresso de Barcelona em 2024, lideranças indígenas dialogaram com intelectuais, como Emanuele Coccia, filósofo que reforça a interdependência dos seres vivos. Coccia argumenta que a vida é um contínuo, conectado pela respiração compartilhada: “Respiramos uns aos outros”. Sua visão complementa a filosofia indígena, que nunca precisou “descobrir” essa interconexão — ela sempre esteve presente em seus modos de vida. Krenak critica a ideia de humanidade universal, que ignora a pluralidade de existências e marginaliza os saberes indígenas. Ele aponta o racismo estrutural que rebaixa essas culturas a “folclore”, ignorando sua profundidade filosófica. Em vez disso, ele propõe que aprendamos com os povos originários, que já enfrentaram muitos “fins de mundo” e sabem que resistir é mais que sobreviver: é manter viva a beleza da existência coletiva.

Saberes Ancestrais e o Presente

A verdadeira inovação pode não vir da tecnologia, mas da sabedoria ancestral. Povos originários sempre souberam que “o rio é avô, a terra é mãe, e o tempo é espiral”. Essa perspectiva ressoa com Coccia, que descreve as plantas como alicerces do mundo habitável. Ele afirma: “As plantas transformam luz em mundo… respiramos o que elas exalam”. Para os indígenas, uma árvore é mais que um recurso: é um ser vivo, parte de uma convivência e reciprocidade. Os povos indígenas veem a Terra como parte de si mesmos, uma mãe com quem se dialoga e compartilha dores e alegrias. Salvar a humanidade está intrinsecamente ligado a salvar o planeta, o que passa por ouvir aqueles que convivem com ele há milênios. O colapso ambiental atual também reflete um colapso de imaginação. A filosofia de Coccia e a cosmovisão indígena oferecem caminhos de reencontro, cura e reencantamento com a vida.

O Futuro Ancestral

O Dia dos Povos Indígenas, celebrado em 19 de abril, deve ir além de homenagens pontuais. É necessário um compromisso diário de proteção, respeito e valorização dessas culturas. Os povos originários não são passado — são um futuro radicalmente possível. Apesar da dor e da destruição que enfrentaram, continuam a ensinar, plantar, curar e resistir. Enquanto o Ocidente teme o fim, eles já aprenderam a sobreviver e reinventar o mundo. Para nós, urbanos, que tratamos a natureza como recurso, o planeta clama por um novo rumo. Precisamos reconhecer que os povos originários têm muito a nos ensinar. Eles não são “menos”, mas parte de uma diversidade que nos completa. Escutá-los exige humildade e uma união baseada no respeito e na comunhão.

Encontro e Reconexão

O que está em jogo é maior do que nós: é a continuidade da Terra como mãe de todos os seres. Reaprender a dançar com os ritmos da terra, em uma grande dança coletiva, onde todas as culturas e seres compartilham o mesmo chão, é o gesto mais revolucionário de nosso tempo. O futuro será possível apenas se for vivido em comunhão — com a Terra, os rios, os ventos e os saberes ancestrais. Que possamos, juntos, caminhar rumo a um futuro enraizado nos saberes primevos, onde cada passo ecoa as raízes do mundo. Os povos originários, com sua resiliência e generosidade, nos mostram que ainda há tempo para “adiar o fim do mundo” e recomeçar. O futuro será ancestral.

Por Sueli Lopes, escritora e doutora honoris causa em Literatura.

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