Sertanejo soteropolitano londrino
Há 16 anos em Londres, Tiago Di Mauro ganhou o último edital de apoio à produção cinematográfica da Ancine – Agência Nacional de Cinema do Brasil. O órgão ainda existe, mas desde 2019 não abre editais deste tipo. Aos 41 anos, Tiago recebeu a verba do governo brasileiro para escrever o roteiro de London Eye, uma produção brasileira britânica ainda sem data para ser filmada.
“O filme trata da jornada de uma transexual brasileira que vem parar em Londres por acidente e conhece aqui um operador de CCTV, que a observa pelas câmeras de segurança”, explica Tiago. “É sobre o encontro deste homem com essa personagem em transição.”
Aos 41 anos, Tiago é mais celebrado como profissional aqui do que em seu país de origem. Formado em cinema e vídeo pela FTC da Bahia, com mestrado em Film Curating pela London Film School e agora a concluir o mestrado em direção pela MET Film School, Tiago se prepara para filmar ano que vem seu primeiro longa e participa da curadoria dos filmes do Sunset Screening Sessions, em Londres.
Nesta entrevista, o sertanejo soteropolitano londrino dá dicas de como entrar e fazer sucesso no mercado cinematográfico inglês e fala sobre o recente diagnóstico de dislexia, e o que isso mudou em sua vida.
Notícias em Português – Como foi a pandemia no aspecto profissional?
Tiago Di Mauro – Na verdade, na pandemia estive muito ocupado. Ganhei o último edital da Ancine, em 2019. Recebi uma verba para desenvolvimento do projeto e tinha que escrever. O meu prazo final era 13 de agosto de 2020. Passado isso, decidi me inscrever em um mestrado em tempo integral na MET Film School e não só fui aprovado, como me foi oferecida uma bolsa. Então, todo esse tempo tem sido intenso.
O que é a Infinita?
A Infinita é uma prestadora de serviço e fábrica de ideias. Fazemos produções de filmagem e curadoria de música e cinema. Meus clientes estão principalmente na América Latina e minhas atividades dependem muito da demanda. Tive bastante demanda até o começo da pandemia.
Qual a sua relação com o Brasil hoje?
Tenho muita relação com o Brasil. Como produtor e curador artístico, foco minha atenção para a corrente tropicalista. Produzo shows e trago para Inglaterra artistas da cena contemporânea brasileira. Já produzi show do Carne Doce, grupo de indie rock de Goiânia; Josyara, da Bahia; e Arthur Nogueira, do Pará.
E com Londres? Qual sua relação?
O que me trouxe à Londres foi uma relação de amor, e o amor à cidade é o que me mantém aqui. Sou brasileiro com descendência italiana, fui educado em Juazeiro da Bahia. Digo que sou sertanejo soteropolitano londrino. Londres é o lugar do mundo em que me sinto mais abrigado. Sou mais celebrado como profissional aqui, e acredito que muito se deve ao quanto se é valorizado o senso de ‘unique’, de ser único.
O que é preciso para trabalhar com audiovisual em Londres?
Para trabalhar com comunicação visual é preciso ter consciência de que você está contando uma história. É preciso entender a linguagem. Você tem que gostar muito e não espere virar uma celebridade. É uma carreira que pode até trazer fama, mas precisa ser exercida com paixão e não por ego. É preciso estudar muito e ter noção de suas capacidades. Não tentar ser ator se não tiver talento para atuar.
Você sempre quis seguir essa carreira?
Eu sempre quis fazer cinema. Eu não podia estudar cinema fora da Bahia, então achei que o mais próximo seria estudar relações internacionais. No terceiro ano do curso, foi inaugurada a primeira faculdade de cinema da Bahia. Deixei o curso incompleto e recomecei na faculdade de cinema, sem duvidar.
O domínio da língua inglesa pode ser um entrave?
Eu tenho dislexia e a língua inglesa tem nuances que eu simplesmente não alcanço. Tenho nível acadêmico de compreensão, mas pulo palavras quando escrevo tanto em inglês, quanto em português. Aliás, fui diagnosticado com dislexia há pouco tempo depois que percebi repetir os mesmos erros quando escrevia e inglês e em português. Eu já tinha uma desconfiança, então decidi fazer os testes.
Ter o diagnóstico de dislexia mudou algo na sua vida?
Ter o diagnóstico de dislexia foi libertador. Porque viver envolve também o processo de se entender. Quando descobri que tenho dislexia, tirei um fardo. Porque estava sempre com questionamento tipo “mas por que estou cometendo esse erro de novo?”. Entender sobre dislexia é saber sobre o uso do lóbulo esquerdo do cérebro (ligado à linguagem) e direito do cérebro (ligado ao visual). Minha mente é muito visual, o que explica a minha escolha profissional.
O que você diria para alguém recém-diagnosticado com dislexia?
Recomendo dialogar sobre isso e entender. Não é nada que me envergonhe, ao contrário, me potencializa. Steven Spielberg tem dislexia.
Alguma dica para quem está em Londres com o sonho de trabalhar com cinema?
O melhor lugar para um cinéfilo é uma sala de cinema. Há várias salas incríveis em Londres, e vários festivais também. Para trabalhar com cinema é preciso saber alinhar os conhecimentos. Cinema é sim matemática. E é muito importante saber se comunicar. Saber como pedir um plano, por exemplo. Uma dica para quem está em Londres é tentar trabalho como runner. Há muita demanda aqui e é uma forma de aprender.
O que faz o runner?
Runner é aquele profissional que está ali no set para fazer tudo, dá um suporte geral. Ele ou ela faz café, segura os cabos, ajuda o produtor em qualquer coisa. Uma figura essencial no set. Um runner é capaz de observar todas as áreas de um set de filmagem. E assim você vai descobrir o que realmente quer fazer.
Quando London Eye estará pronto?
London Eye está escrito e pronto, mas ainda não está em produção. Trata-se da jornada de uma transexual brasileira que vem parar em Londres por acidente e conhece aqui um operador de CCTV, que a observa primeiro pelas câmeras de segurança. É sobre esse encontro deste homem com essa personagem em transição.
Fale um pouco do projeto Odisseia?
Odisseia vai ser filmado no Brasil em 2022 – isso já está confirmado e deverá ser a minha estreia como diretor. Trata-se de uma produção pensada para ser barata. O filme é sobre a reconexão de uma família após a pandemia e a cura pelo contato com a natureza. Filho, mãe e avó precisam se mudar e sair da capital para uma paisagem do interior do Brasil. É sobre voltar para casa.
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