Temporariamente cegas
Reflexões de uma brasileira a viver em Londres: quando um incidente com os vizinhos nos faz pensar sobre nossas falhas
Por Janice Mansur*
Movimento estranho na rua. Sirenes tocando. A curiosidade, junto à minha sempre preocupação com o ser humano, me leva até a porta. Abro-a e vejo três viaturas na rua. Este bairro londrino é bem pacato pelo viés de meu olhar brasileiro. O que seria?
Fico à porta esperando descobrir o incidente, quem sabe não posso fazer algo? Aqui embaixo moram três senhorinhas por quem me afeiçoei e há algumas crianças no prédio…
Súbito os policiais sobem as escadas e dão de cara comigo. Fico meio preocupada porque meu inglês não está lá essas coisas, mas consigo entender que se tratava de um garotinho e sua mãe. Pergunto se o procuravam. Disseram que não, estavam com ele. Tenho a intuição de perguntar sua idade. Daí eles dizem seu nome também. Então, confirmei minhas suspeitas, devia ser ele, “o menininho chorão”.
Volto minha atenção para os policiais que batem na porta da vizinha, e ela balança para dentro. Meu Deus, a porta está aberta!, me assusto. Eles entram, e assim que ouço alguém falar lá de dentro, fico mais tranquila. Eles apontam para cima e explicam que receberam um chamado de que havia uma criança no quarto andar.
Adoro crianças e desde que cheguei ao prédio logo de cara fizemos aquela amizade de vizinhos de porta. Ela é uma moça muito prestativa, com seus dois filhos, a menina tem 13 e o garotinho deve ter por volta de 5, e sempre recebeu nossas compras online e nós as dela. Neste dia, minha intuição falou alto porque faz tempo que não vejo um homem que morava na casa, entrar ou sair, provavelmente seu marido.
Assim, os guardas me agradeceram e ficaram lá conversando. Entrei, e essa situação me gerou uma série de especulações: será que ela se separou do pai das crianças? Será que não estava em casa? Será que…?
Intriga-me a constância com que ele chora. Já o vi chorando acompanhado dela quando saem, já o vi chorando quando chegam, já o ouvi dentro de casa chorando… até hoje não descobri o motivo, que agonia, mas posso crer que seja a ausência da figura paterna. E da materna também, por que não? Essa mãe, como tantas outras, assoberbada com tantos afazeres, obviamente, falha.
Falhamos quando temos de ser dois na criação dos filhos, por mais que tentemos ser super-heroínas. Ultimamente me questiono até quando, ao término dos relacionamentos, as mulheres terão de relegar suas carreiras, seus sonhos e sua vida a segundo plano? Guarda compartilhada é tão raro… mas ela deveria servir mais para que ambos os pais decidissem sobre a vida dos filhos em nível de igualdade, não importando o período de permanência deles com cada um. Talvez esse tipo de ausência fosse um pouco compensada. O casal, embora separado, deveria dividir a mesma responsabilidade, seja para os momentos de lazer ou para as decisões mais relevantes na vida de seus filhos. A harmonia entre eles, mesmo que separados, deveria existir para comtemplar a criança. Não é necessário se amar para se respeitar, ou é? Entretanto não é isso o que geralmente acontece.
(…) Mas você acha que a história acaba assim? Claro que não!
No final das contas, às voltas com minha mudança de flat, esbarrei com a mãe no corredor do prédio e ela me contou, um pouco sem graça, que sua filha tinha dormido e o menininho tinha pegado a chave e fugido sem ela ver. Coisas que acontecem a nós humanos, não é? E você, já passou por alguma situação na qual ficamos temporariamente cegas?
* Janice Mansur é professora, poeta e criadora do perfil de Instagram e canal de YouTube Better and Happier.